Nosso sistema tributário passou por uma reforma recente e as mudanças virão gradualmente. Mas historicamente nosso sistema foi pensado para uma economia física. O que falar então da tributação para economia digital, levando em conta que hoje esse meio transforma tudo, da maneira como consumimos até como as empresas operam globalmente? O Brasil está preparado para tributar esse novo mundo?
A economia digital, segundo a OCDE, inclui todos os modelos de negócio baseados na internet: serviços de streaming, marketplaces, aplicativos de transporte, redes sociais e hospedagens por aplicativo. É a evolução de modelos tradicionais — o Uber do táxi, o Airbnb dos hotéis, as redes sociais da TV e do rádio.
E qual foi o impacto da economia digital nas relações de consumo e no papel do Estado? Quem nos responde é o consultor geral da Câmara dos Deputados, José Evande Araújo, doutor em Direito e autor do livro Economia Digital e Tributação do Consumo no Brasil (1).
“Para resolver o problema da tributação na economia digital, uma das soluções é criar um IVA — um imposto que tribute toda a base de consumo, sem exceção, e que seja cobrado no destino. Se você tem uma transação de um país para o outro, o imposto tem que ser cobrado onde o serviço é consumido. Essa é a solução, e foi justamente o que o Brasil fez. No que diz respeito a esse problema, a reforma tributária vai dar conta.”
Mas por que tributar é um problema?
Tributar é tirar parte da renda privada para financiar o Estado, segundo regras claras. Só que essas regras ficaram ultrapassadas. E aí surgem as injustiças: empresas enormes que quase não pagam imposto. Um exemplo marcante foi o da Apple, investigada por pagar apenas 1% de imposto no Reino Unido. Isso gerou indignação e reacendeu o debate sobre o chamado planejamento tributário agressivo. E como isso se relaciona com o sistema brasileiro? Quem responde é o José Evande.
“A gente tinha um sistema tributário pensado pra uma economia física. A renda vai pra União, os estados ficam com a base de consumo, e os municípios recebem a base menos valorizada, que são os serviços. Só que a economia mudou. A gente deu uma cambalhota na civilização, e aquilo que era mercadoria física foi perdendo importância. Aí a gente não sabe mais se deve tributar pelo ISS ou pelo ICMS.”
Essa dificuldade em classificar o que é serviço e o que é mercadoria impactou até os tribunais. A disputa entre ICMS e ISS sobre softwares durou 21 anos no Judiciário! Isso mostra como os conceitos tradicionais já não dão conta da complexidade da economia digital.
E, para enfrentar isso, a OCDE propôs uma nova abordagem para lidar com a tributação das big techs e evitar paraísos fiscais, como explica o José Evande.
“Existe uma percepção generalizada de que essas empresas pagam menos imposto do que seria justo. Essa discussão está no mundo inteiro. Claro, elas não concordam, mas existem soluções em debate. A OCDE, por exemplo, propôs um mecanismo de tributação mínima global de 15%. O Brasil já aprovou isso. O lucro gerado aqui tem que ser tributado aqui — no mínimo em 15%. Isso já é um avanço.”
Outro ponto crítico é o local onde o imposto é cobrado, que muitas vezes dá margem à guerra fiscal. Isso influencia diretamente na justiça tributária entre países?
A guerra fiscal é a disputa entre os estados federativos para atrair investimentos e isso pode prejudicar a arrecadação, como explica José Evande.
“A economia digital tem impacto tanto na tributação da renda quanto na do consumo. E aí entra um ponto importante: o imposto deve ser cobrado onde está o consumidor. Se um software da Holanda é vendido aqui no Brasil, a tributação tem que ocorrer aqui. Quando se tributa na origem, abre-se espaço pra guerra fiscal e planejamento tributário agressivo. Às vezes, parece que a empresa vende aqui, mas faz de conta que não recebeu nada. E isso compromete a justiça fiscal.”
A questão é que as regras atuais foram feitas para um mundo onde as empresas tinham sede física em cada país. E hoje não é mais assim.
Vamos ouvir o José Evande:
“A digitalização mudou tudo. Hoje você pode atuar em vários países a partir de uma única base. Antes, era necessário abrir uma empresa em cada país. Agora não mais. Só que as regras de tributação foram feitas pra outra época, quando se presumia que a empresa teria atuação física em cada local. Por isso a gente precisa de uma nova lógica tributária — que acompanhe essa nova realidade global.”
A reforma tributária no Brasil foi um passo importante. Mas os desafios não são apenas técnicos — são também políticos, éticos e globais. A justiça fiscal na economia digital depende de cooperação internacional e de vontade política nacional.
A economia digital não pode ser um território sem lei. A tecnologia avança, e a justiça tributária precisa acompanhar. Não podemos permitir que quem mais lucra seja quem menos contribui.
A transição para uma nova lógica tributária é complexa, mas necessária. Está em jogo a capacidade do Estado de responder às necessidades da população num mundo cada vez mais digital.
- https://www.amazon.com.br/Economia-Digital-Tributa%C3%A7%C3%A3o-Consumo-Brasil/dp/6556276855
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Comentário – Beth Veloso
Apresentação – Ana Raquel Macedo