Uma advogada autista. Um médico autista. Um relacionamento entre pessoas autistas. Essas situações soam tão extraordinárias que parecem até roteiro de filme. E são. Pelo menos quatro séries atuais tratam desse tema. Mas você sabe o que é o autismo? Quais as características da pessoa autista? Se não sabe, se liga neste 15 Minutos de Cidadania.
Entrevistas nesta edição: representante do Instituto Brasileiro das Pessoas com Deficiência Rapha Athayde, representante da Abraci-DF Lucinete Ferreira, professora e escritora Gláucia Mendes, servidora pública autista Thaís Picchi e psiquiatra da Infância e Adolescência do Hospital Universitário de Brasília André de Mattos Salles.
Produção – Cristiane Baker e Lucélia Cristina
Trabalhos técnicos – Indalécio Wanderley
Reportagem – Verônica Lima
Apresentação – Verônica Lima e Cláudio Ferreira
Edição – Cláudio Ferreira
Conteúdo acessível
TRILHA – “Brave” de Kim Jong Wan
Uma advogada autista. Um médico autista. Um relacionamento entre pessoas autistas. Essas situações soam tão extraordinárias que parecem até roteiro de filme.
E são. Pelo menos quatro séries atuais tratam desse tema. Na visão da Thaís Picchi, que é uma servidora pública formada em Psicologia e que se descobriu autista depois dos 40 anos, esses programas ajudam a naturalizar a presença de pessoas autistas nos mais diversos espaços e profissões.
“A ideia que se tinha de ver o autista mais como o nível 3, que tem muita dificuldade de se comunicar então eu não encaixava. Há cerca de 10 anos, comecei a ter notícias de que existiam pessoas mais, entre aspas, funcionais, como filha de alguém do meu trabalho estava lançando livro e era autista. Então, poxa, uma pessoa autista pode escrever um livro”.
Foi então que ela levantou a possibilidade de ser autista e foi atrás dos testes. Quando confirmou o diagnóstico, muitas coisas passaram a fazer sentido.
“Eu comecei a realmente refazer boa parte da minha biografia, a me aceitar porque ainda me cobro muito de ser como o padrão. Então, se num dia eu sei que eu tenho uma reunião, eu não vou marcar a noite um happy hour porque é interação demais pra mim”.
TRILHA “No.4 Piano Journey” de Esther Abrami
Bem, já deu pra perceber que o tema deste 15 minutos de Cidadania é o autismo. Eu sou Verônica Lima.
E eu sou Cláudio Ferreira.
TRILHA “No.4 Piano Journey” de Esther Abrami
O autismo tem um nome médico: Transtorno do Espectro Autista, ou TEA. Fala-se em espectro porque há, dentro do autismo, três níveis de dificuldade e de necessidade de suporte. O psiquiatra da Infância e Adolescência do Hospital Universitário de Brasília André de Mattos Salles explica as características de cada nível.
“O nível 1 seriam crianças e adolescentes que precisam de suporte mínimo, que conseguem ter autonomia, desenvolver suas características, sua rotina diária. Já o nível 2 são crianças com um pouco mais de dificuldade, de comprometimento, principalmente na comunicação social, na fala, demanda um pouco mais de auxílio. Os indivíduos que estão do nível 3 precisam de bastante suporte, por terem comprometimento maior”.
Antes, os casos de nível 1 eram conhecidos como Síndrome de Asperger, e isso também ajudou a confundir a Thaís. Mas esse termo está em desuso e o nome agora é um só: TEA.
TRILHA – “Hovering thoughts” de Spence
O autismo não é uma doença; é um transtorno. E não existe um marcador neurológico, como um gene específico que faça com que o indivíduo seja ou não autista. O psiquiatra André Salles explica.
“A gente pensa como se fosse uma cesta em que você pode ter um ou dois genes na cesta ou cinco, seis genes. Os genes em si não vão causar o autismo, mas eles podem trazer uma propensão”.
Nas palavras do médico, o autismo é um conjunto de características. A principal delas é a dificuldade na comunicação social, tanto na comunicação verbal, através da conversa, da fala, quanto na comunicação não verbal, pelo entendimento das expressões, gestos, emoções.
O autista tem grande dificuldade de entender essa comunicação e também de se expressar de acordo com as suas regras, que, muitas vezes, não são claras. A Thaís dá um exemplo.
“Uma vez chegou uma amiga da minha mãe, toda feliz pois tinha comprado um sapato novo. O que você achou dessa minha bota? Eu falei: parece que comprou na feira… Como eu falava isso? Eu achava que tinha que falar a verdade, ou fazia comentários sem avaliar como isso chegava no outro”.
Ela lembra que, mesmo quando as pessoas a alertavam sobre esse comportamento, ela não era capaz de compreender o problema.
“Se você fala geral demais, eu não vou entender. Tem que ser específico: quando você falou isso, a outra pessoa se sentiu assim. E não era assim que chegava pra mim, então era meio inócuo porque eu continuava sem entender.
TRILHA – “In five straight rows” de Mini Vandals
Outra característica comum no autismo é a hipersensibilidade auditiva. Barulho incomoda demais. Quando a Thaís está em uma sala cheia de gente falando alto ao mesmo tempo, a sensação é a mesma de quando alguém arranha a unha na lousa, ou seja, dá uma agonia danada e ela tem vontade de sair correndo. Hoje, ela tem, no trabalho, um abafador, um protetor contra ruídos de máquinas usado por trabalhadores.
TRILHA – “In five straight rows” de Mini Vandals
Por outro lado, pode haver uma hipossensibilidade tátil. A criança esbarra em coisas, ou se cutuca e parece não sentir muita dor, mesmo em um contato mais bruto. Nem todas as pessoas vão apresentar todas as características. O médico André Salles lista mais algumas que podem estar presentes.
“Muitas vezes ele lida com angústias, com suas emoções através de movimentações, é o que a gente chama de estereotipia. Eles fazem movimentos que pra quem está de fora não tem finalidade definida, mas que pra ele cumpre uma função, de acalmar, estabilizar, ou de demonstrar afeto. Pode lembrar como exemplo o flapping, o bater de mão, eles batem a mão como se fosse um bater de asas”.
Há, ainda, o hiperfoco, que é o interesse muito restrito por determinados assuntos, como mapas, barcos ou bandeiras. A pessoa sabe tudo sobre aquele tema e não apresenta o mesmo interesse por outros assuntos.
Aqui surge outro esterótipo do autista: o da inteligência excepcional, que hoje chamamos de altas habilidades. Segundo o médico André Salles, pode ser que o hiperfoco favoreça o desenvolvimento de alguma habilidade específica, mas não existe relação direta entre autismo e altas habilidades.
TRILHA – “Aos teus pés” com Cria
Aos seis meses de idade, Pedro Henrique era visto como um bebê sério. Não sorria para as gracinhas da mãe; nem olhava quando ela chamava. Seguiu assim seu primeiro ano de vida, com o que a mãe, Gláucia Mendes, chama de um brincar solitário.
Mas foi apenas após os dois anos, diante do desenvolvimento diferenciado da fala, com muitas repetições e pouca comunicação efetiva, que a jornada da família começou.
“Aí começaram os olhares, primeiro do pediatra, da dentista, profissionais da escolinha… então tem toda uma jornada antes de se chegar ao neuropediatra, e é uma coisa muito sofrida para as mães. Quando ela é levada a uma consulta com um neuropediatra é um choque e eu atribuo isso à falta de informação”.
Hoje, às vésperas do sexto aniversário de Pedro Henrique, Gláucia entende que aquelas características de seu bebê eram sinais do autismo. Mas, naquele momento, ela não tinha condições de saber disso.
E é por isso que a Lucinete Ferreira, da Abraci-DF, Associação Brasileira de Autismo Comportamento e Intervenção, defende que as famílias sejam orientadas para reconhecer os primeiros sinais. O diagnóstico precoce é importantíssimo para dar maior qualidade de vida à criança.
“Cada criança tem seu tempo. Essa frase é perigosíssima, porque vocÊ fica com a criança até quatro, cinco anos sem diagnóstico, enquanto poderia estar sendo estimulado. É a família que deve falar com o médico: não tem contato de olhar, não tem reciprocidade, apresenta estereotipias, que são movimentos repetitivos, ecolalias, baixa tolerância à frustração, que é o excesso de birra”.
Estereotipias são movimentos repetitivos, como o bater de mãos que o médico André Salles citou. Ecolalia é uma linguagem que não é funcional; a criança apenas repete o que ela ouve de outra pessoa, ou de um vídeo.
Outro sinal: brincadeiras não funcionais. Em vez de brincar com o carrinho, a criança só rodopia as rodinhas, por exemplo.
A dica do médico André Salles para os pais é a seguinte: fiquem atentos à caderneta da criança, que é entregue ainda na maternidade. A gente só costuma se lembrar dela na hora de dar as vacinas, mas ela traz também escalas, gráficos e tabelas com o tempo esperado para o desenvolvimento de cada habilidade.
“É muito importante entender o que esperar do indivíduo naquela faixa etária e entender se o que ele apresenta é um atraso importante, que precisa de intervenção. (…) Talvez o diagnóstico possa até ficar para um segundo momento, mas a observação da dificuldade e trabalhar essa dificuldadeda maneira mais precoce possível é fundamental”.
Assim, dá até para buscar a transição de um nível mais alto, como o 2 do Pedro Henrique, para um mais baixo, como o 1 da Thaís. É com esse objetivo que a Gláucia Mendes se dedica diariamente ao desenvolvimento do filho.
“Hoje o que espero para a vida adulta do meu filho é chegar a um desenvolvimento em que ele possa ter autonomia. Eu vejo a evolução. Eu sinto o quanto o meu filho evoluiu, o quanto ele se teve independência principalmente nas atividades diárias, como ir ao banheiro, falar, apontar, expressar suas vontades, mesmo que ainda não com uma fala que condiz com a idade dele. E o meu anseio é que eu possa ver meu filho fazendo uma faculdade, e também se casando e tendo uma profissão, porque é muito possível”.
TRILHA – “Waiting” de Andrew Langdon
Mas, para isso, as pessoas autistas precisam ter acesso a serviços de suporte, públicos e de qualidade. E a sociedade precisa mudar o seu olhar em relação a todas as deficiências.
O diagnóstico de autismo, ou de qualquer outra deficiência, não define uma pessoa. Cada indivíduo tem sua personalidade, seus interesses, suas características. O autismo, ou qualquer outra deficiência, é apenas uma delas.
Quando a gente enxerga apenas a limitação, deixando em segundo plano tudo que a pessoa é capaz de fazer, a gente cai em um tipo de discriminação chamada de capacitismo. Segundo a Rapha Athayde, do Instituto Brasileiro das Pessoas com Deficiência, esse tipo de preconceito se baseia na falsa ideia de que existem corpos perfeitos.
“Um corpo perfeito no sentido de não ter nenhuma deficiência não significa que é um corpo que funcione perfeitamente; não existe perfeição na natureza. Então você está errando nos dois lados. Você está assumindo que um corpo perfeito é igual a uma perfeição, que não tem nenhuma deficiência, não tem nenhum problema, não tem nenhuma dificuldade, e você está assumindo que toda pessoa que tem algum tipo de deficiência é incapaz”.
Infelizmente, ainda estamos longe de vencer esse preconceito. A Lucinete Ferreira, da Abraci-DF, dá alguns exemplos de episódios que as pessoas com autismo ainda precisam enfrentar no Brasil.
“Tivemos situação bem dramática na porta da Abraci. Uma menina com autismo em crise lá dentro e as pessoas rindo na porta da Abraci. Elas estavam na porta de uma instituição que atende pessoas com autismo e falando que deveria jogar um balde de água. Na presença de uma birra, de uma grande crise, você só encontra pessoas que te apontam o dedo, que dizem que é falta de limite, que falta um balde de água fria. Você encontra discriminação na escola, porque tem o pai que acha que porque o menino é um pouco mais agressivo não pode estudar com os filhos dele. No transporte público, onde uma mãe tem negado assento pra pessoas especiais e ela está com criança com autismo e a pessoa olha e fala, mas ele não tem problema físico”.
TRILHA- “Spring Fling” de TrackTribe
Para ajudar, a Gláucia, mãe do Pedro Henrique, escreveu o livro “E quando um de nós é autista?”. O João é um menino autista que ama barcos. E a Laura é a coleguinha que descobriu uma maneira de se divertir com ele: brincando com o que ele mais gosta, mas cada dia de um jeito diferente.
Nas palavras da Thaís, se as pessoas aceitassem que somos diferentes e tudo bem, talvez ela nem precisasse de um diagnóstico. Sua forma direta de falar não seria interpretada como descaso ou arrogância, e seu incômodo com o barulho não seria visto como frescura. Seriam apenas jeitos diferentes de lidar com a vida, como todos nós temos.
TRILHA- “Spring Fling” de TrackTribe
Termina aqui o 15 minutos de Cidadania, que teve produção de Cristiane Baker e Lucélia Cristina, reportagem e texto de Verônica Lima; trabalhos técnicos de Indalécio Wanderley; edição de Cláudio Ferreira e apresentação de Verônica Lima e de Cláudio Ferreira. Se você tem alguma dúvida, mande pra gente! O e-mail é radio@camara.leg.br, e o whatsapp é 61 – 99978-9080.
O 15 Minutos de Cidadania é produzido pela Rádio Câmara e transmitido pelas rádios parcerias em todo o Brasil, como a Rádio da Família 87,9 FM, da cidade de Tubarão, Santa Catarina. Você pode conferir todas as edições do programa no site radio.camara.leg.br e no seu agregador de podcast preferido. Uma boa semana e até o próximo programa.